As bruxas que queimaram (e as que ainda queimam hoje)
- Isabel Debatin

- 15 de jul.
- 3 min de leitura

Houve um tempo em que bastava uma mulher saber demais para ser perigosa. Ou falar demais. Ou andar sozinha. Ou cuidar das outras. Ou simplesmente não se calar. Essas mulheres foram chamadas de bruxas. E por isso foram perseguidas, isoladas e queimadas, por fora e por dentro. Naquela época, acendiam fogueiras reais. Hoje, a lenha é simbólica. Mas a chama continua ardendo.
A primeira vez que ouvi sobre a caça às bruxas foi na escola. Me impactou, claro. Sempre me indignei com injustiças. Mas naquela época, talvez eu ainda não tivesse o repertório que tenho hoje, nem a profundidade de olhar que só vem com o tempo.
Crescemos acreditando que bruxa era sinônimo de maldade. A mídia ajudou. Os desenhos, os filmes, os contos. Mas hoje eu sei: bruxa era, muitas vezes, só uma mulher que sabia quem era. A mulher que curava com ervas. A que não se casava. A parteira. A solitária. A que tinha coragem de dizer “não”. Todas essas eram, de algum modo, ameaças ao sistema patriarcal. E por isso foram silenciadas.
Segundo historiadores, entre os séculos XV e XVIII, entre 30 e 60 mil mulheres foram executadas por bruxaria, a maioria delas vítimas de medo, ignorância e controle social. E embora não acendamos mais fogueiras nas praças, ainda queimamos mulheres. Só mudamos o método.
Você não precisa ser chamada de bruxa para sentir a dor da exclusão. Basta se impor. Falar o que pensa. Enfrentar um homem em público. Ou, simplesmente, sair do lugar que esperavam que você ocupasse.
Já me chamaram de “bocuda”, de difícil, de intensa, de mandona. Mas o que eu fazia, no fundo, era só me defender. Defender meus direitos. Me posicionar. E se, para alguns, isso me tornava uma ameaça... talvez seja exatamente esse o ponto.
Aos olhos de uma sociedade acostumada a ver mulheres como frágeis e delicadas, uma mulher que se posiciona ainda é confundida com alguém que “quer ser o homem da situação”.
E não pense que isso não dói. Dói, principalmente quando, junto com a coragem, vem o peso de não poder se mostrar frágil. Se você é a mulher forte, a que defende os outros, a que bate na mesa... então não pode chorar. Não pode se vulnerabilizar. Não pode dizer que não aguenta mais.
Só que pode, sim.
Porque somos tudo.
A força e a entrega.
A espada e o colo.
Conheço muitas mulheres que seriam chamadas de bruxas, no melhor sentido. Mulheres com intuição forte, com instinto afiado, com dons que curam. Mulheres que conhecem o seu corpo, que acolhem outras mulheres, que não abaixam a cabeça. Elas não têm chapéus pontudos, nem caldeirões. Mas têm uma força que incomoda. E, talvez por isso, ainda sejam queimadas, simbolicamente, todos os dias.
As fogueiras de hoje são invisíveis.
Estão no machismo velado. No julgamento sobre o corpo, a maternidade, a sexualidade. Estão nas empresas que escolhem homens em vez de mulheres, “porque ela pode engravidar”. Estão na política, onde a cadeira feminina ainda parece emprestada. Estão, principalmente, na forma como a sociedade insiste em colocar a mulher como segunda opção.
E talvez a fogueira mais cruel de todas esteja onde menos deveria: nas próprias mulheres.
Quando se julgam. Quando se comparam. Quando se rivalizam.
Se as mulheres se protegessem com a mesma força com que se atacam, nenhuma de nós queimaria.
A liberdade feminina, hoje, é parcial. Podemos vestir o que quisermos, mas seremos julgadas por isso. Podemos escolher não ter filhos, mas ouviremos que vamos nos arrepender. Podemos ser líderes. mas continuaremos sendo chamadas de difíceis.
Ser livre, hoje, ainda é um risco. Mas também é uma escolha.
E toda mulher que ousa escolher, em pleno 2025, carrega no peito a centelha de uma bruxa.
Isabel Debatin



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